Brasília dopada
A banalização dos psicotrópicos na capital federal
A ingestão exagerada de remédios psicotrópicos — aqueles usados no tratamento da depressão, da ansiedade e de outros transtornos mentais preocupa. Entre 2015 e o ano passado, o uso de antipsicóticos em Brasília cresceu 53,4%.
Observar o avanço desses tipos de enfermidades, entender os efeitos nocivos provocados pelo alto consumo desses remédios e analisar os reflexos na sociedade é um desafio complexo que o Correio aborda, a partir de hoje, na série Brasília dopada.
São dramas revelados a cada laudo médico. Uma ponte difícil de cruzar na história de milhares de famílias. Rotina duramente afetada pelo tabu, pela discriminação, pelo autoconhecimento e pelo sonho de cura. Enquanto isso, muitos desses pacientes sobrevivem dia após dia com soluções passageiras, vindas de caixas compradas nas farmácias.
Apesar da banalização, há quem precise do uso contínuo de psicotrópico. Muitos pacientes resistem em admitir doenças como a depressão. Eles têm vergonha do diagnóstico e vivem entre o tabu e o preconceito.
Cresce o uso de medicamentos para controlar emoções
No ano passado, Secretaria de Saúde distribuiu 7,2 milhões de doses de antidepressivos.
O mundo moderno cada vez mais impõe efeitos colaterais à condição humana. O estresse do dia a dia cobra seu preço e sentimentos como agitação, melancolia e depressão atingem a população independentemente da condição social. O consumo de remédios para controlar ou estabilizar essas sensações, os psicotrópicos, tem crescido na capital federal. Para se ter dimensão da quantidade desse tipo de medicamento ingerida pelo brasiliense, é como se todos os 2,9 milhões de habitantes do Distrito Federal tivessem tomado mais de duas doses de antidepressivo no ano passado. Somente a Secretaria de Saúde distribuiu 7,2 milhões de comprimidos em 2016, como revela levantamento realizado a pedido do Correio.
Psicólogos, psiquiatras e terapeutas são unânimes: o alto consumo e a banalização desses medicamentos podem se tornar um grave problema de saúde pública. O uso, para os estudiosos, está acima do que seria aceitável. Eles consideram que somente os casos graves deveriam ser submetidos a tratamento medicamentoso prolongado. Não saber lidar com emoções, fracassos e dilemas do cotidiano revela como a sociedade tem tratado com negligência as perspectivas da mente. Relatório divulgado em abril pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra a expansão da depressão, por exemplo. O documento diz que 6% da população com mais de 18 anos no DF já recebeu o diagnóstico da doença — percentual inédito até então.
Um detalhe acende o sinal de alerta. Entre 2015 e 2016, o consumo de medicamentos antipsicóticos em Brasília cresceu 53,4%. O cálculo é ancorado na lista dos 10 remédios psicotrópicos mais distribuídos pela Secretaria de Saúde. Essas drogas são usadas para o controle de colapsos e perturbações extremas da mente, como alucinações. Elas são mais fortes que os antidepressivos, por exemplo.
Preconceito
Os problemas mentais, geralmente, são socialmente considerados menos grave. Um erro que acentua o embaraço provocado por essas doenças. Os custos desse tipo de enfermidade são altos para quem sofre — constantemente alvo de preconceito e assédio moral — e até mesmo para a economia. Segundo levantamento da Universidade de Brasília (UnB), com dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), 48,8% dos trabalhadores que se afastam por mais de 15 dias do emprego sofrem algum transtorno mental, sendo a depressão o principal deles.
A banalização desses tipos de medicamentos separa, de um lado, pessoas que vendem psicotrópicos sem capacitação. De outro, aqueles que consomem indiscriminadamente. É o caso de um estudante contabilidade de 27 anos. Ele não quis ter a identidade revelada por receio da reação da família. “O medicamento melhora minha concentração e me deixa mais focado. A primeira vez que tive contato com alguém que vende sem ser médico foi em uma festa no Park Way. Isso deve ter uns dois anos. Desde então, sempre tenho alguns comprimidos de ritalina para focar nos estudos”, conta o morador de Águas Claras. Ritalina é um tranquilizante, indicado para o controle do transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH), muito consumido por estudantes e concurseiros para aumentar a concentração.
O rapaz diz que vai parar assim que for aprovado em um concurso público. A compra é sempre com um mesmo vendedor. Um colega de um conhecido da faculdade. O “reforço” custa caro e ele não sabe a origem do remédio. “Já gastei R$ 200 com menos de 20 comprimidos. Uso pouco, só em casos que preciso estudar muito. Sei que isso mexe com meu organismo, mas é só por um período”, minimiza. Quem conhece o estudante não desconfia do uso desregrado de psicotrópico. O porte atlético, conquistado nas academias de Brasília, a alimentação equilibrada e o estilo de vida saudável disfarçam esse terrível hábito. Os efeitos colaterais são perigosos, como ansiedade, aumento da pressão arterial e taquicardia.
O crime da venda ilegal
A banalização dos medicamentos psicotrópicos criou um mercado ilegal de compra e venda que despertou a atenção da polícia. Nos últimos 10 dias, pelo menos dois casos ganharam repercussão na capital federal. Em uma única apreensão, em Ceilândia, Jonathan Cordeiro Santos, 28 anos (foto), acabou preso com 497 comprimidos de rohypnol — um ansiolítico de uso restrito —, 165 folhas de receituário médico e carimbos com inscrições dos conselhos regionais de medicina do DF e de Goiás. Ele vendia, segundo as investigações da 23ª Delegacia de Polícia (P-Sul), o medicamento a pessoas sem qualquer diagnóstico. Agora, a polícia investiga se há participação de profissionais da saúde no crime e onde o remédio era conseguido. Dois dias depois, um homem de 20 anos também acabou preso pela Polícia Militar. Ele ofereceu, no Riacho Fundo 2, comprimidos de rohypnol a quatro meninas entre 12 e 17 anos.
ARTIGO | Diagnóstico e consumo de remédio adequados
Antônio Geraldo da Silva
Diante do significativo aumento do uso de medicamentos psiquiátricos ao longo dos últimos anos, precisamos ressaltar a real necessidade do consumo de tais remédios. Infelizmente, devido à escassez de informações acerca do assunto, as pessoas confundem a doença psiquiátrica com o sofrimento mental. O sofrimento não caracteriza a doença em si, não necessita de acompanhamento médico ou tratamento medicamentoso para tal. No que concerne aos transtornos mentais, necessitamos de tratamento, cuidado e atenção específica.
No Brasil e no mundo, há uma severa desigualdade relacionada a esse assunto: ao mesmo tempo em que o número de consumo de psicotrópicos cresce, apenas um terço das pessoas que sofrem de depressão grave são tratadas. Encontramos então, um paradoxo que nos dá um panorama da sociedade atual, em que muitos consomem psicotrópicos sem necessidade e as pessoas que realmente precisam não recebem o tratamento adequado.
Defendemos o devido acompanhamento periódico com médico psiquiatra, para identificação do tempo de uso específico para cada substância, possíveis interações medicamentosas e efeitos colaterais, que é fundamental para o sucesso de qualquer tratamento, psiquiátrico ou não.
Outro ponto a ser debatido é a questão do aumento do número de diagnósticos de transtornos psiquiátricos. O consumo de medicamentos tem crescido de forma proporcional a transtornos como depressão, ansiedade, bipolaridade, esquizofrenia e demais doenças mentais? Toda vez em que falamos do excesso de medicamentos, precisamos analisar os dados de maneira criteriosa e responsável.
Em nosso país, por exemplo, há um subtratamento das doenças psiquiátricas, com grande quantidade dos doentes mentais nas cadeias, nas ruas, cercados de muito preconceito e descaso em relação a esses pacientes. A assistência pública em saúde mental no Brasil é vítima de um descaso significativo dos gestores das últimas duas décadas, com esperança de modificação a partir deste ano.
Antônio Geraldo da Silva é presidente eleito da Associação Psiquiátrica da América Latina (Apal) e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
Antônio Geraldo da Silva é presidente eleito da Associação Psiquiátrica da América Latina (Apal) e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
Transtornos mentais: viver entre o tabu e o preconceito
O estigma é tamanho que para fugirem, muitos pacientes negam as doenças e se automedicam
A vontade de largar o trabalho num hospital público, e nunca mais aparecer, era a ideia fixa da técnica de enfermagem Alessandra Diniz Lima Lopes, 36 anos. Durante dias, ela passou isolada, agarrada em almofadas e sem vontade de sair da cama. Há três anos, ela tem depressão. O que Alessandra sente não é tristeza. O sentimento é tão complexo como as explicações para a explosão de casos pelo mundo. Ela faz parte do grupo de pacientes que realmente necessitam de psicotrópicos e tem o tratamento atrapalhado pela repercussão negativa do mal. A discriminação cresce no mesmo passo que o uso se torna desregrado. “A depressão é perder o sabor da vida. Jamais tomaria remédios que têm efeitos colaterais tão drásticos sem necessidade”, pontua.
O caso dela se agravava a cada dia. Do distanciamento familiar à internação numa unidade de terapia intensiva (UTI), foi questão de tempo. “Eu escutava as pessoas, mas não conseguia corresponder. Não falava nem abria os olhos. Meu corpo não obedecia mais as minhas vontades. A cama se tornou um esconderijo, um refúgio seguro”, conta, ao relembrar as 24 horas de hospitalização.
Assim como a moradora de Sobradinho, 200 mil pessoas no Distrito Federal têm a doença, de acordo com estimativa, publicada em abril, da Secretaria de Saúde. O mal tem se espalhado com rapidez (veja arte). Cada vez mais, há casos graves na cidade, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Desde o diagnóstico, Alessandra toma três medicamentos diários. Os comprimidos são para estabilizar o humor e atenuar os sintomas da depressão. Ela não gosta, quer parar. Sabe da importância das drogas para o tratamento, mas reage mal aos efeitos colaterais. Tem medo da dependência. “Já consegui reduzir a dosagem. Hoje, eu me controlo melhor. Não gostaria de tomar, mas é necessário”, ressalta, emocionada, com os olhos marejados. A família desembolsa cerca de R$ 800 mensais com o tratamento.
Mesmo com uma ligeira queda no consumo de psicotrópicos no DF — em 2015, a Secretaria de Saúde distribuiu mais de 13 milhões de doses, contra quase 12 milhões do ano passado — o volume de diagnósticos graves merece atenção. Aqui, 8,5% dos casos de depressão, segundo pesquisa do IBGE, são de grau intenso. Como o caso do músico Luis Fernando Araújo Silva, 34 anos. Ele deixou o trabalho, em 2012, e não saía de casa.
Hoje, o morador da Asa Norte fala abertamente sobre sua doença, mas, há cinco anos, o diagnóstico o tirou completamente do prumo. Ficou mais de 20 dias internado. Passou a tomar seis remédios diariamente. “Sempre há dúvida, será que agora as minhas reações são minhas ou são efeitos dos medicamentos? Passei a viver esse dilema”, conta.
Vergonha do diagnóstico
O estigma é tamanho que encarar a consulta com o psiquiatra, iniciar a bateria de terapias e adequar a rotina aos remédios, e seus efeitos colaterais, exige comprometimento. O constrangimento, às vezes, é comum. Para fugirem, muitos negam a doença e se automedicam. Tudo em vão. Nesse ponto, pouco importa a condição social ou o grau de instrução. A maioria enfrenta as doenças mentais como um vexame. Alguns nem sequer superam a fase de aceitação. Isso é um problema sério. As pessoas precisam admitir a doença. Um dos exemplos é o de um policial civil. Ele chegou a agendar uma entrevista com a reportagem, com a condição de não ter a identidade revelada. Depois, desistiu até mesmo de compartilhar o seu depoimento.
Francisco Angelo Cechin atua há mais de 30 anos como psicólogo e psicoterapeuta. Ele acredita ser natural a resistência ao receber o diagnóstico e ao iniciar o tratamento. O especialista aponta que uma das principais falhas é cuidar demais dos sintomas da doença e se esquecer das causas. “Quais são os motivos? O que deprime ou deixa um paciente ansioso? Se isso não é levado em consideração, começa a haver uma contradição de remédios. Um abaixa a depressão, outro aumenta a ansiedade. Um é usado para dormir, outro para se manter acordado”, avalia.
Alessandra, a personagem que o leitor conheceu no início da reportagem, concorda com Cláudio e Cechin. Para ela, é necessário manter um equilíbrio entre remédios, terapias e apoio familiar. “Passei nove meses afastada do trabalho. Quando os remédios são ministrados de maneira correta, as conversas com o psicólogo são produtivas e o amparo das pessoas que a gente gosta é presente, o sentimento começa a mudar. Não é fácil, não é rápido nem indolor”, comenta. “Talvez hoje eu esteja uns 60% do que eu era. Quem sabe, um dia, eu consiga voltar a ser o que eu já fui.”
Doenças negligenciadas
Há quem defenda que os transtornos mentais estão ligados à genética, às questões químicas ou ao estilo de vida. Há outros especialistas que não. Mas o único ponto de consenso entre médicos é que a prevenção e a cura desses males dependem de atenção aos sinais da mente. Nesse ponto, estamos falhando. “A sociedade tem muita dificuldade de aceitação dos distúrbios mentais. Cerca de 25% da população têm um tipo de transtorno mental. Falando-se de questão de saúde pública, é como se em toda família tivesse pelo menos um caso de pessoa com distúrbio mental”, destaca Cláudio Martins, diretor-secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Porém, vale destacar a argumentação de que o estresse do mundo moderno colabora, mas ele sozinho não desencadeia um quadro depressivo ou ansioso. Para algumas pessoas, atividades como cuidar dos filhos ou realizar tarefas profissionais podem gerar angústia, mas isso não é depressão, por exemplo. “Há um superdimensionamento de dilemas e frustrações normais. As pessoas passam a tomar remédio para controlar fatos corriqueiros — uma marca do tempo em que estamos vivendo”, ressalta Sônia Regina Loureiro, psiquiatra do Departamento de Neurociências da Universidade de São Paulo (USP).
Michele Müller, jornalista especialista em neurociência clínica e neuropsicologia educacional, defende que somente tratar esses males com remédios, tira do paciente a possibilidade de recondicionar o cérebro com outras formas de terapia e mudança de comportamento. “Quanto mais se foca na ingestão de remédio, maior fica o estigma. Temos que priorizar um tratamento amplo. Não sou contra a medicação. Em alguns casos, é essencial, mas, com certeza, a maior parte é medicada sem necessidade.”
Jovens expostos ao uso de remédios cada vez mais cedo
Seja por necessidade, com prescrição médica, seja por diversão, com compra clandestina, o consumo de medicamentos por essa parcela da população preocupa especialistas
Por diversão, necessidade ou automedicação, os jovens têm consumido com frequência alarmante os medicamentos psicotrópicos — usados para controlar ou estabilizar depressão, pânico ou ansiedade. A curva crescente é evidenciada desde a década de 1990. Para a maioria dos especialistas ouvidos pelo Correio, há uma tendência de adoecimento juvenil, predominante diante dos costumes do mundo moderno. Outros apostam no lazer e na automedicação como as principais motivações para o uso desregrado.
Seja qual for o objetivo, o cenário preocupa. Apesar de não haver praticamente nenhum monitoramento e de os dados estarem defasados, uma pesquisa que ouviu 2.425 estudantes dos ensinos fundamental e médio do Distrito Federal mostrou resultado alarmante. Dos entrevistados, 5,6% admitiram o uso de ansiolíticos. Quando analisados apenas os alunos da rede privada, o índice salta para 8,7%. Os ansiolíticos, segundo o estudo, são a quinta substância mais consumida entre essa parcela da população.
As informações são do 6º Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes, com dados de 2010 — o mais recente sobre o assunto. Ele não distingue quem toma com prescrição médica e aqueles que se valem da banalização e do consumo por diversão. A série histórica revela que quase dobrou a parcela de adolescentes entre 16 e 18 anos que ingeriram alguma droga piscotrópica entre 1997 e 2010.
Os resultados preocupam os especialistas. Isso porque quem precisa pode ter um tratamento prolongado em demasia. Enquanto que os que não devem tomar podem se tornar dependentes. É o caso de Elielto — ele prefere ser identificado somente pelo primeiro nome e não aceitou ser fotografado. Em 2010, então com 16 anos, o estudante começou a consumir comprimidos de fluoxetina, um antidepressivo. A agitação e a insônia provocadas pelo remédio eram desfrutadas em festas que varavam a noite. Hoje, ele está com 23 anos, tem uma filha de 11 meses e ainda toma doses do remédio.
Por telefone, Elielto conversou com a reportagem. Negou com veemência ser dependente e revelou: a família não sabe. “Tomo por prazer. O álcool não faz o mesmo efeito, e não uso nenhum tipo de droga”, diz, ao se referir a substâncias ilícitas (veja em Depoimento). A reportagem levou o caso de Elielto a alguns médicos. Nenhum quis comentar formalmente a situação, mas todos criticaram o emprego dado pelo jovem ao medicamento. “Esse é o exemplo clássico de quem está viciado. A agressividade e a negação incisivas são um sinal. Se há sete anos o rapaz tem o hábito de ingerir doses para um fim que não o de tratamento, é um desvio de comportamento preocupante.
Mas o que mais impressiona é a facilidade de acesso à droga. “Há um mercado paralelo forte e que tem se mantido com o passar do tempo. A história desse jovem chancela essa tese”, ponderou um psiquiatra de um dos maiores hospitais particulares do DF.
Tratamentos precoces
Enquanto uma parcela de jovens usa psicotrópicos por diversão, há muita gente que precisa da ajuda dos medicamentos para manter rendimento escolar e foco em atividades do cotidiano. Um movimento da vida moderna. Um desses exemplo é o do estudante do 9º ano do ensino fundamental Thiago Diniz Lopes, 15 anos. Ele toma ritalina — um calmante — para o tratamento do transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e a ansiedade. O rapaz é filho da técnica de enfermagem Alessandra Diniz Lima Lopes, 36 anos, que o leitor conheceu na primeira reportagem da série Brasília dopada.
A família recebeu a reportagem em casa, na semana passada, para contar as barreiras de dois males delicados. “A agitação de Thiago sempre foi uma característica muito forte. Ainda criança, uma pediatra notou que havia algo que não era apenas peraltice infantil”, relembra Alessandra. O menino emenda. “Quebrei braço, cortei dedo enquanto brincava e conversava bastante na sala de aula. Os professores sempre me chamavam a atenção, mas eu não conseguia focar naquilo que eles diziam nem permanecer sentado”, conta.
Ainda hoje, os transtornos de Thiago são evidentes. Ele coçou constantemente o cotovelo direito durante a entrevista. Cruzou as pernas diversas vezes, roeu unhas e esfregou o rosto. Foco mesmo só no caratê. “Fui selecionado para as eliminatórias do campeonato brasileiro”, ressalta com orgulho. A mãe não deixa passar batido. “Mas, em semana de competição, ele fica dois dias sem dormir”, brinca. O mesmo sintoma da estudante universitária Ana Thereza Costa, 20. Em semana de provas, ela não prega o olho. É assim desde o ensino fundamental, quando começou a se tratar de ansiedade aos 15 anos.
“Hoje, consigo lidar com a pressão. Tomo bem menos remédio. Fiz acompanhamento com psicólogo para aprender a lidar com essa tendência. Sei da importância e da responsabilidade que se deve ter com esses medicamentos. Teria desistido do ensino médio e não teria chegado à faculdade se não tivesse aprendido a lidar com meu organismo”, descreve a menina, que chegou a tomar cinco medicamentos distintos. O caminho de 38km entre o Recanto das Emas, onde vive, e a universidade na Asa Norte, onde estuda, é usado para a leitura. Uma distração diferente do isolamento de tempos atrás.
Sete de 10 remédios psicotrópicos tiveram alta no consumo em dois anos
O consumo de antipsicóticos, usados para o controle de colapsos e crises severas de pacientes com transtornos mentais, foi o que mais cresceu
A Secretaria de Saúde distribuiu, no ano passado, 11,9 milhões de doses de 10 medicamentos psicotrópicos. O dado revela a representatividade que transtornos mentais, como depressão e ansiedade, entre outros, têm na vida do brasiliense. Dessa lista de remédios, sete tiveram alta de consumo nos últimos dois anos. Entre os que mais cresceram estão os antipsicóticos — drogas superpotentes para o controle de colapsos e crises severas de pacientes. Um único título mais que dobrou a prescrição. O carbonato de lítio (300mg) passou de 505.301 doses entregues em 2015, para 1.035.688 em 2016 — 104,9% a mais.
O levantamento, feito pela Secretaria de Saúde a pedido do Correio para a série Brasília dopada, mostra ainda o avanço dos antidepressivos. Só o Nortriptilina acumulou alta de 103,2%, no mesmo período, passando de 238 mil doses fornecidas. Ao todo, a pasta desembolsou R$ 1,6 milhão apenas com a compra dessa dezena de medicamentos. “É como se fosse uma explosão de diagnóstico, uma epidemia. Esses números mostram a dimensão do problema”, pondera a jornalista Michele Müller, especialista em neurociência clínica e neuropsicologia educacional.
O índice pode ser ainda mais alto, pois o Serviço Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não disponibilizou o total das vendas nas farmácias. Contudo, somente o volume entregue pelo Executivo local é quatro vezes maior que a população da capital federal: 2,9 milhões de habitantes, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Brasília no topo
A escalada da ingestão desse tipo de medicamento no DF não é ancorada apenas na estatística do governo. Há dois anos, a cidade ganhou destaque em um dos estudos mais completos da última década, segundo pesquisadores. Os dados do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, concluído em 2015, mostrou que o consumo em Brasília de ritalina por mil habitantes é o segundo do país — perde apenas para Porto Alegre. Quando analisada a de Clonazepam, Brasília está em 11º lugar.
O texto traz um alerta. Os pesquisadores recomendaram às autoridades de saúde do DF e do governo federal a fazer a soma dos dados do consumo de psicotrópicos da rede pública com os vendidos nas farmácias para se ter um dimensionamento mais fiel. Isso nunca foi feito. “O alto consumo de ritalina em Porto Alegre e no Distrito Federal pode indicar a necessidade de um monitoramento das prescrições de psicofármacos nessas cidades. Os dados que apresentam informações das vendas em farmácias e drogarias particulares podem ser aprofundados com os dados da compra de tais medicamentos pelo Poder Público, cujas informações não se encontram no SNGPC”, escreveram.
Cláudio Martins, diretor secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), também aponta um consumo excessivo no DF. “Para as pessoas com transtornos mentais, quanto mais mágica é a melhora, mais sedutora ela se torna. Temos muitas medicações e a ciência avançou muito, mas isso tem que ser bem prescrito e em condições de diagnóstico adequadas. Não é só uma questão neuroquímica, mas de metabolismo e estilo de vida.”
Serviços públicos deficitários
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) desenvolvem o atendimento individual de pacientes acometidos por transtornos mentais. No DF, são 17 em funcionamento, em 13 regiões administrativas. A quantidade não é suficiente para atender a demanda da população. A Secretaria de Saúde admite que está aquém do necessário, mas não estima a defasagem. As doenças mais recebidas são depressão e ansiedade. O governo não disponibilizou informações sobre a quantidade de atendimentos.
Quem depende da rede pública para se tratar enfrenta dificuldades. É o caso da professora de história Maristela Andrade de Aguiar, 49 anos. Há quase uma década, ela toma remédios para controlar a depressão. Quando os remédios estão em falta nas farmácias do governo, ela paga do próprio bolso. “As consultas com os psiquiatras são caras e, alguns procedimentos, o plano de saúde não cobre. Quando tenho que comprar os remédios, lá se vai boa parte do meu salário”, conta. Ela já chegou a gastar R$ 1,5 mil com o tratamento no mês.
Na última semana, Maristela trocou pela quarta vez de psiquiatra. Quer reduzir a quantidade de medicação. Hoje, são três tipos. “O consumo desses remédios me assusta. Todo mundo está usando alguma coisa. Tenho medo quando vejo as pessoas tomando exageradamente ou sem recomendação médica. Essas drogas afetam várias áreas. Já não tenho a criatividade e a rapidez de raciocínio de antes”, reclama.
Mudanças
Da lista de 10 medicamentos psicotrópicos nos últimos 12 meses, quatro passaram por períodos de desabastecimento. Os antipsicóticos haloperidol e carbonato de lítio ficaram com o estoque zerado por oito e quatro meses, respectivamente. O antidepressivo fluoxetina, por três. A coordenadora da Psiquiatria da Secretaria de Saúde, Fernanda Benquerer, garante que melhorias e ajustes estão sendo feitos na assistência. Ela ressalta a complexidade dos atendimentos.
“Há uma procura grande e crescente. As pessoas, quando chegam ao psiquiatra, já estão muito adoecidas e em casos muito graves. Possivelmente, se tivessem buscado atendimento antes, talvez o quadro não teria se desenrolado com gravidade”, explica. O setor deve passar por mudanças. Profissionais do Saúde da Família devem assumir os cuidados de casos leves e graves e os especialistas, as situações mais críticas. “A medicina não é a única alternativa. A psicoterapia ajuda bastante”, completa.
A oferta de tratamento para doenças mentais do Ministério da Saúde é estruturada no Sistema Único de Saúde (SUS), que conta com acompanhamento psicológico e psicoterápico, terapia ocupacional e assistência hospitalar. O órgão informou, em nota, que o Comitê de Enfrentamento do Suicídio está atualizando as diretrizes de atendimento. O Ministério da Saúde e a Anvisa não comentaram a falta de monitoramento e de integração de dados do consumo de psicotrópicos na rede pública com os de venda nas drogarias.
Falsificação de receitas e falta de fiscalização encurtam o caminho até os psicotrópicos
Especialistas exigem posicionamento mais firme do poder público. Há pelo menos duas investigações na Polícia Civil sobre o assunto
Mapear os caminhos dos psicotrópicos comercializados no mercado paralelo e monitorar o volume prescrito por médicos nos consultórios são desafios que ainda parecem estar longe de serem resolvidos. Esse tipo de remédio é de controle especial e traz riscos. Há dilemas que precisam ser debatidos com urgência pela sociedade. Até a classe médica vive um conflito quando o assunto é a banalização do uso de drogas para tratar transtornos mentais. Psiquiatras criticam a prescrição feita por profissionais de outras especialidades, como clínicos, cardiologistas e neurologistas. Psicólogos, por sua vez, ancorados na neurociência, questionam os benefícios desses medicamentos e estimulam uma abordagem de tratamento mais ampla. Todos, porém, concordam com um ponto: é preciso frear a venda ilegal dos psicotrópicos.
Não há estatísticas sobre esse mercado. O Correio questionou a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Civil durante a produção da quarta reportagem da série Brasília dopada. Nenhum dos órgãos soube informar a quantidade de remédios apreendidos ou quantas pessoas acabaram presas por esse crime. Na Coordenação de Repressão às Drogas (Cord), unidade da Polícia Civil, há pelo menos duas investigações em andamento com esse foco. “Há uma demanda preocupante por esse tipo de medicamento. O papel da polícia é fazer a repressão desse crime, mas o debate é maior”, destaca o delegado adjunto da Cord, Leonardo Cardoso.
Há milhares de receitas falsas usadas nas farmácias do Distrito Federal. A conclusão é do presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina (Apal) e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva. “Não há controle da produção da receita e de carimbos médicos. Eu já fui alvo de falsificação. Havia na rede pública receitas que eu não prescrevi. Os meus dados estavam ali, mas eu não conhecia o paciente, e a assinatura era falsa”, critica.
Descontrole
A preocupação de Antônio tem embasamento. Na última semana, em Taguatinga, a gerente de uma das maiores drogarias da Avenida Comercial Norte aceitou conversar com a reportagem. Ela pediu para não ser identificada, mas revelou as dificuldades de se enfrentar a falsificação de receitas e destacou a crescimento desse tipo de ação. “A realidade é que qualquer um pode fazer um carimbo com um registro do CRM (Conselho Regional de Medicina) e assinar um laudo”, detalha. Enquanto conversava com o jornal, duas pessoas compraram psicotrópicos.
“Estou neste ramo há 16 anos e nunca vi tamanho consumo dessas drogas. Os antidepressivos, antipsicóticos e ansiolíticos estão tendo uma demanda maior que a explosão dos remédios para emagrecer há uma década”, comparou a gerente. Ela conta que, muitas vezes, os vendedores até desconfiam, mas não têm base legal para questionar a receita. A mulher critica a ação dos gestores públicos: “Quais são as ferramentas que o governo ou a polícia nos dá? Nenhuma. Há um aumento de uma prática criminosa que ninguém está se preocupando. A produção de receitas médicas e de carimbos precisam ser revistas com urgência. A falsificação vai adoecer mais gente”, conclui.
Pâmela Saavedra, farmacêutica do Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim), do Conselho Federal de Farmácia, destaca: “É impossível negar o uso abusivo desses medicamentos”. E emenda. “Percebemos que os medicamentos com efeito curto são amplamente mais usados. As pessoas sentem necessidade desse efeito da tolerância, da estabilização de humor. É uma demanda preocupante. O consumo da forma que está é um problema de saúde pública”, pondera.
Vamos falar sobre psicotrópicos?
Para melhorar a conjuntura, é preciso uma mudança de comportamento, acredita a vice-coordenadora do Centro de Valorização da Vida (CVV), Leila Herédia. Para ela, o cenário só passará por alterações quando a sociedade acabar com o neglicenciamento das doenças psicológicas e entender o funcionamento das drogas usadas nesse tratamento. “As pessoas precisam falar do assunto, o que antes não acontecia. A partir disso, podemos lutar por uma política pública, falar em prevenção e monitorar o uso dos remédios”, avalia.
Essa não é uma realidade distante da saúde pública brasileira. “Esse investimento já ocorreu no Brasil. Ninguém falava em câncer de mama. Precisou a atriz Cássia Kiss estrelar campanhas na televisão (entre 1988 e 2002) para isso mudar. Hoje, temos uma ampla divulgação”, argumenta Leila. “É uma questão de querer fazer.”
Depressiva há 12 anos, a professora de geografia Marilúcia de Oliveira Cardoso, 48 anos, já se tornou alvo dos reflexos do preconceito. No ápice de uma crise, em que ficou afastada da escola onde trabalhava, uma ligação de um colega a surpreendeu. “Ele pediu para vir aqui em casa. Estranhei, mas não me opus. Ele não disfarçou a intenção. Queria saber como era para receber o diagnóstico, as receitas e pedir o afastamento. Não estava doente, mas tinha um viagem marcada”, conta, indignada.
Ela se recusou a passar informações. Hoje, a história serve como uma lição de como precisamos avançar. “As pessoas não têm dimensão do que esses remédios causam na vida de alguém. Não é tomar e ficar tudo bem. Tem consequências sérias. Essa desvalorização das doenças mentais, porque elas são invisíveis, maltrata os pacientes e faz com que uma gente mal-intencionada lucre com isso”, critica.
Saídas alternativas podem reduzir consumo de remédios, segundo especilaistas
O conhecimento da mente é uma das possibilidades de escapar da banalização dos psicotrópicos. Terapia ajuda pacientes a superarem a depressão
Buscar alternativas para o tratamento de transtornos mentais sem que o paciente não seja submetido exclusivamente ao efeito de medicamentos psicotrópicos é um desafio para o qual médicos e estudiosos ainda não têm resposta. Mas há pistas. Aliar técnicas e propor meios de mudança de comportamento são algumas apostas. Na última reportagem da série Brasília dopada, o Correio ouviu especialistas a fim de delinear perspectivas para reduzir a banalização dos psicotrópicos.
A psicoeducação, um método de conhecimento das nuances da mente, é a aposta de Cláudio Martins, diretor secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Ele alerta que é um processo infinito, mas capaz de mudar o contexto atual. “Temos que falar mais das causas do meio ambiente. É evidente que esses fatores (estresse, irritação, insatisfação com o emprego) influenciam e, quando acoplados, podem deixar mais pessoas suscetíveis à depressão e à ansiedade. Isso é representação social dos problemas”, explica. Ele emenda. “É preciso adotar um repertório de vida diversificado, como atividades ocupacionais fora do trabalho, da família, fazer atividades físicas e investir no lazer (ler, ouvir música)”, completa.
Francisco Ângelo Cechin, psicológo especialista em psicoterapia, garante que o autoconhecimento é mais importante que o uso prolongado de remédios psicotrópicos. “Os efeitos da medicação são passageiros. Não se ensina como lidar com os problemas, mas, sim, a abafá-los com remédios. Toda doença tem sua origem na mente. Se a mente estiver bem, o corpo funciona bem. Tomar um medicamento para cercear o sono a fim de trabalhar ou estudar à noite é boicotar uma necessidade básica”, defende.
A soma terapia e remédios é o que livra centenas de pacientes da derrocada da depressão, por exemplo. Mas até mesmo os médicos não se entendem quando questionados sobre o consumo de medicamentos e a frequência das sessões terapêuticas. O presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina (APAL) e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, alerta para “uma banalização da prática”. “Se mandarmos 20 pessoas aos consultórios de psicólogos, todas sairão com a recomendação de terapia. O foco do tratamento tem que ser o bem-estar do paciente”, destaca.
Formação dos médicos
Pâmela Saavedra, farmacêutica do Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim) do Conselho Federal de Farmácia, acredita que a banalização dos psicotrópicos também está ligada à formação dos médicos. “Ensinam aos médicos que o medicamento é o único tratamento. Há um uso abusivo desses medicamentos. Entre 2010 e 2012, o uso cresceu 72% no país. Nas capitais, a cada grupo de 10 mil moradores, 36 fizeram uso de uma dose de ansiolítico”, ressalta.
Ela defende uma prescrição mais responsável e restrita. “Essas drogas devem ser recomendadas apenas por especialistas. O clínico, o neurologista ou cardiologista devem encaminhar o paciente para um psiquiatra. O clínico deve tratar esses transtornos leves, com terapias alternativas, mudança de comportamento, mas não com medicamentos”, conclui a farmacêutica.
Sonia Regina Loureiro, psiquiatra do Departamento de Neurociências da Universidade de São Paulo (USP), frisa a necessidade de uma maior responsabilidade ao administrar drogas psicotrópicas. “As questões do cotidiano e existenciais são muitas vezes tratadas com medicação na expectativa de resposta imediata. As medicações são necessárias, mas é preciso seriedade no diagnóstico e no tratamento. Existem outras possibilidades de tratamento”, pondera.
A história de quem superou
A artesã Sara Lídia Faustino dos Santos, 36 anos, toma três remédios entre antidepressivos e controladores de humor. As drogas ajudam no tratamento, mas para ela, o que realmente a livrou da derrocada da depressão foi o artesanato. O que era uma válvula de escape se tornou negócio. Ela montou um ateliê na 211 Norte. “Ocupar a mente com tarefas agradáveis ajuda bastante. Os remédios têm efeitos colaterais”, critica.
Ao longo de uma breve caminhada na 115 Sul, onde mora, ela contou como é se reestabelecer após 10 anos de tratamento. “É como reencontrar o sentido da vida. As coisas voltam a ter sabor e viver torna-se uma prazer. Coisa bobas voltam a provocar alegria. Já enfrentei momentos muito difíceis, se perdi a vontade de continuar, mas é preciso retomar as rédeas e seguir em frente”, ensina.
Hoje, Sara não abre mão das terapias. “Me ajuda muito. É algo que faz a diferença no meu cotidiano. As conversas aliviam e trazem perspectivas que sozinha eu não conseguiria enxergar”, conta.
ARTIGO | Por uma abordagem mais abrangente
Michele Müller
Uma série de pesquisas realizadas em diversos países europeus aponta para a evidência de que o foco nas raízes biogenéticas é uma forma inapropriada de combater a rejeição às pessoas que convivem com distúrbios mentais. Ou seja, tratar essas questões de forma reducionista — como doenças provocadas por desequilíbrios químicos que podem ser corrigidos com medicação — em vez de reduzir, aumenta o estigma.
Uma das consequências dessa visão está no papel que representam os remédios, que, dessa forma, se transformam nos protagonistas de qualquer tratamento. Ao reduzir os problemas, tira-se do paciente qualquer motivação para alterar as condições do meio em que vive e recondicionar o próprio cérebro. Não se trata de um manifesto contra medicação, que, em alguns casos, é necessária e eficaz, mas uma forma de abrir as possibilidades para se lidar com os sintomas.
Exemplos de sucesso, apesar de vistos como alternativos pela medicina psiquiátrica tradicional, provam que, assim como pode ser determinante para o aparecimento dos sintomas, as circunstâncias psicossociais são fundamentais na superação das dificuldades. Um desses exemplos nasceu na década de 1980, no interior da Finlândia, em uma região que sofria com um dos maiores índices de esquizofrenia da Europa.
A abordagem chamada Open Dialogue — que não exclui o fármaco —, mas o desloca para segundo plano, tem como princípio o atendimento intensivo, sendo o primeiro encontro preferivelmente dentro de 24 horas depois da crise, sempre em casa ou em um local da escolha do paciente.
A base do programa está, como o próprio nome sugere, no diálogo — que necessariamente envolve a família ou as pessoas mais próximas do paciente. A partir da reflexão, o paciente encontra novas perspectivas e sente que, aos poucos, ganha mais controle sobre sua própria mente. Controle que somente é possível se ter quando o problema é analisado sob o ângulo psicossocial, já que a visão unicamente biológica, além de pouco consistente cientificamente, traz ainda mais vulnerabilidade e a triste sensação de total falta de poder para quem sofre com os transtornos mentais.
Michele Müller é jornalista especialista em neurociência clínica e neuropsicologia educacional
http://especiais.correiobraziliense.com.br/brasilia-dopada
Comentários
Postar um comentário